Surge no Brasil uma nova tendência literária conhecida por "Literatura Marginal"

Escritores provenientes das periferias de grandes métropoles brasileiras ganham "voz" e passam a transpor suas perspectivas de mundo através da literatura.
Surge no Brasil uma nova tendência literária conhecida por "Literatura Marginal"

los primarios son olvidados

Panorama de casas típicas das periferias brasileiras. Fiver Weed ∞ via Compfight

Há algumas décadas surgiu no Brasil uma nova tendência literária conhecida por "Literatura Marginal", em que escritores provenientes de periferias das grandes métropoles brasileiras passaram a transpor suas perspectivas de mundo através de um campo cultural dominado pela elite brasileira, pertencentes à classe social mais privilegiada do país que, historicamente, detêm um alto nível cultural, em decorrência das maiores possibilidades de acesso à elevadas produções culturais.

Mas, atualmente, moradores da periferia, que compõem uma parcela da população brasileira marginalizada, esquecida e oprimida, passaram a ressonar suas "vozes" e a propagar sua revolta por meio de escritos pertencentes ao marco da Literatura Brasileira Contemporânea, onde lutam por legitimação e reconhecimento social no concorrido campo literário de âmbito nacional.

A estudiosa e referente professora brasileira Heloísa Buarque de Hollanda, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e especialista em Literatura Contemporânea, reconhece que esta luta ultrapassa as fronteiras do campo literário e alerta para o fato de que a cultura é um exemplo de resistência e produção de novos sentidos políticos em países em desenvolvimento inseridos no contexto da globalização e, neste sentido, "a literatura também mostra algumas propostas e mudanças estruturais no sentido de sua criação e divulgação. Nestes casos, a própria noção de cultura, e por tabela a de literatura, é forçada a repensar seus parâmetros e até mesmo, – o que mais interessante -, sua função social". Assim que, neste contexto, "as características e as estratégias das expressões artísticas vindas das periferias vêm surpreendendo como a grande novidade deste início de século com o desejo de responder ao acirramento da intolerância racial e às taxas crescentes de desemprego provenientes dos quadros econômicos e culturais globalizados."

Alguns dos grandes exemplos desta nova onda literária no Brasil são os escritores Ferréz, da periferia de São Paulo e Paulo Lins, da periferia do Rio de Janeiro.

Reginaldo Ferreira, mais conhecido como Ferréz, assim como Paulo Lins, buscam expor casos urbanos da periferia de grandes metrópoles, neste caso São Paulo e Rio de Janeiro, a partir do uso de uma linguagem não formal, acessível à maior parte dos brasileiros e a partir da representação da realidade social vivenciada por tais agentes periféricos, determinado como um caso de alteridade aproximativa, uma visão "desde dentro", já que os próprios escritores fazem parte deste espaço marginalizado, marcado pela oposição centro-periferia e por toda a carga de exclusão e imposição que esta dicotomia acarreta.

Depois de publicarem seus livros, também produziram roteiros para cinema baseado nas histórias de algumas de suas obras literárias, que tiveram boa aceitação do público, como é o caso do filme “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, longa-metragem que ganhou diversos prêmios nacionais e internacionais, a ponto de levar à esfera mundial a discussão sobre a violência, impunidade, corrupção e exclusão nas periferias brasileiras.

O investigador, Alexandre Barbosa Pereira, da Universidade de São Paulo (USP), esclarece em seu artigo sobre o livro “Vozes marginais na literatura”, da antropóloga brasileira Érica Peçanha Nascimento, a base conceitual e o uso da expressão “literatura marginal”, entendida como uma das práticas artístico-culturais reivindicadas pela população periférica, presente nos atuais movimentos de articulação social do entorno periférico brasileiro, que antes estava centrado apenas em reivindicações por melhores condições de infraestrutura urbana e serviços públicos na periferia, como ocorria nos anos 1970 e 1980.

Em “Vozes marginais na literatura”, Nascimento proporciona um melhor entendimento do que são as periferias urbanas brasileiras na atualidade, a autora defende que os representantes desta literatura são integrantes de uma categoria social que busca a afirmação de sua identidade a partir de tomas de posição que levam à ideia de pertencimento e inclusão no espaço artístico e social. Esta auto-valorização provém da necessidade atual dos agentes periféricos em serem autores de sua própria imagem frente ao campo no qual atuam, neste caso, o campo literário, de acordo com a terminologia adotada pelo sociólogo francês, Pierre Bourdieu, intelectual que determinou conceitos relevantes na área dos estudos culturais e literários desde a década de 50, como o conceito de habitus e de campo.

A luta em questão está vinculada à agregação de poder simbólico a representantes deste tipo de literatura tida como literatura de excluídos, “dos sem voz”, em razão da vinculação existente à origem social destes escritores e das características linguísticas empregadas nas obras, que são desprovidas de características adotadas em obras da tradição literária ou de autores de classe média alta que muitas vezes tentam estabelecer uma representação desta parcela da população, mas não deixam de pensar conforme as suas próprias ideologias, estritamente relacionadas ao grupo social ao qual pertencem.

Contudo, tal luta trata-se da necessidade de democratização no processo de produção da literatura, que em um estado mais abrangente está vinculada também à necessidade de democratização do universo social, como afirma Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília,  em seu artigo “Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea”.

Além disso, para Heloísa Buarque de Hollanda, alguns pontos merecem serem revisitados para que haja um aprofundamento destas questões e assim o determina: "Em primeiríssimo lugar a questão dos novos papéis do intermediário. Acho que nesse momento estamos aprendendo que em vez de interpretar demandas e traduzir diretamente culturas devemos exercer o papel de negociadores que possam relativizar nossos espaços de fala, – até hoje um patrimônio digamos tombado pela tradição e pela academia -, para outras vozes que começam a surgir com uma saudável agressividade e alto poder de interpelação. Outro ponto seria o de procurar repensar, com alguma radicalidade, as distinções tão estabelecidas entre o que seria uma cultura 'alta' e uma cultura 'baixa' seja ela uma cultura de massa ou popular. Mais um ponto seria o de ficarmos atentos à tão inevitável quanto interessante mistura, e muitas vezes hibridização mesmo, de gêneros artísticos, mídias e suportes".

E ainda acrescenta: "Em último lugar recomendo uma especial atenção à questão da autoria e da autenticidade tal como a conhecemos, formatada pelo período moderno. Nesse momento desamplers, remixes e pirataria criativa, é fundamental pensar a noção de saber compartilhado e ficar disponível para as novas formas de autoria colaborativa que estão surgindo e que vão sem dúvida forçar uma mudança razoavelmente séria no nosso papel como intelectuais, artistas e formuladores de políticas públicas. E, finalmente, gostaria de passar para vocês o entusiasmo que estou vivendo com esse momento meio assustador, mas certamente atraente. O intelectual não está afinal necessariamente desempregado nesse século XXI. O que ele deve fazer para garantir sua sobrevivência com algum sentido e positividade é, antes de mais nada, uma bela e urgente autocrítica. E, em seguida, testar novas formas de participação e engajamento".

No vídeo acima podemos ver uma das entrevistas do escritor paulistano Ferréz, um dos fundadores da Literatura Marginal no Brasil, no início dos anos 2000, por meio de publicações na revista Caros Amigos.

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