O Cozinheiro do Rei D. João VI, de Hélio Loureiro, é um livro de aromas e sabores

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O Cozinheiro do Rei D. João VI

António de Vale das Rosas, protagonista da obra é um aprendiz que vai para o Palácio de Mafra, em 1805, servir na cozinha do futuro rei D. João VI

 

O Cozinheiro do Rei D. João VI, de Hélio Loureiro, é um livro de aromas e sabores

Hélio Loureiro é um conhecido autor de livros de culinária e gastronomia. Escreveu catorze livros de cozinha, de que podem ser exemplos “Receitas para Vinho do Porto”; “Gastronomia Portuense”; “Gastronomia e Vinho Verde…uma tentação”; “ Sabores de hoje, melhor com vinho verde”; “ Receitas com tradição” e “ À mesa com a nossa selecção”. Mas pouca gente sabe que Hélio Loureiro é autor de um romance , “O Cozinheiro do Rei D. João VI “, editado pela Esfera dos Livros, já em 2008. Passou despercebido então. E talvez seja agora altura para o ler, ou reler, num contexto em que mais claramente se discute a importância cultural da gastronomia e ganham visibilidade na televisão, na internet, e nos jornais, os workshops e programas de culinária, apelando-se às subtilezas de um espectador-gourmet.

O Cozinheiro do Rei D. João VI A” é um livro de aromas e sabores, que tem por base acontecimentos históricos. Hélio Loureiro procura com ele mostrar "que […] a mesa é palco de convívio, de alegria, mas que pode também ser local de conspirações [...] e se morre pela ingestão de alimentos"; nos hábitos alimentares fica patente “a fragilidade humana que com muita facilidade se vende e se corrompe, desviando-se dos princípios que por vezes são valores inabaláveis”. (Loureiro, 2008: 11)

António de Vale das Rosas, protagonista da obra é um aprendiz que vai para o Palácio de Mafra, em 1805, servir na cozinha do futuro rei D. João VI. O Cozinheiro do rei, com o seu inegável talento para combinar ingredientes e sabores, conquista a amizade do seu amo, um grande apreciador da boa comida. António confecionará o prato fatal que levará D. João VI à morte. «O nosso rei não era grande amante de doces. Tentou-se apenas por um leite-creme queimado e uma laranja laminada, salpicada de açúcar e uma pitada de canela e flor de laranjeira». (Loureiro, 2008: 194) O doce esconderá o sabor do arsénico, que passado algumas horas começou a fazer nefasto efeito.

Há alguma ironia nestes doces que disfarçam venenos e nestas receitas tradicionais que escondem traições. O livro está semeado de simbologia numérica. Como se a quantidade fosse, nas receitas como na vida, um dos aspectos da qualidade. Estrategicamente, o leitor, ao longo da obra, deparar-se-á com catorze receitas, catorze formas de ver o mundo, catorze formas de o mudar.

A primeira, Rojões com castanhas, é apresentada num tabuleiro de prata, sujo mas de boa prata portuguesa, com pano de linho bordado da Lixa e bem engomado, num prato de porcelana francesa, acompanhado por fatias de broa que guardavam a gordura que escorria dos rojões (Loureiro, 2008: 26). Prato suculento e próprio de pessoas fortes, tal como o cozinheiro, de “caminhar forte “ (Loureiro, 2008: 23).  “Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és“, recorda-nos (Savarin, Fisiologia do Gosto, 2010: 33).

A segunda é Foda à Moda de Monção, especialidade do cozinheiro. “Não sabeis que em Monção se faz um anho assado em cima de um alguidar com arroz de açafrão e que assando o animal sobre o arroz pinga suavemente toda a gordura sobre este o que lhe confere um sabor e um aroma únicos?” (Loureiro, 2008: 42). O cozinheiro não estava seguro da sua posição no Palácio e considerava o chefe italiano uma ameaça à sua determinação em servir o Rei, mas ao escolher esta receita com um nome utilizado na linguagem calão, a proposta constituiu uma espécie de contra-ataque para marcar o seu “reino”.

A terceira é o Bolo de nozes e ovos moles: “juntava-se agora o cheiro dos meus ovos moles e do meu leite-creme” (Loureiro, 2008: 47). A sobremesa será “borrifada “, “com um magnífico Porto”, o elemento líquido sempre presente na gastronomia do Cozinheiro do Rei. O vinho do Porto difundira-se na Europa, como produto de luxo, pouco tempo depois da demarcação da sua região pelo Marquês de Pombal: é a possibilidade de conciliar nacionalismo e cosmopolitismo.

A quarta é Galinha corada, uma das receitas preferidas do rei. “António prepara-me para hoje uma galinha corada, que é dos poucos alimentos que o meu médico não se aborrece que eu coma. Diz que faz aumentar o entendimento e o juízo, e se ele diz eu como” (Loureiro, 2008: 54). “ Assim melhoradas, as aves de criação estão para o cozinheiro como a tela está para os pintores [...] Serve-se cozida, assada, frita, quente ou fria, inteira ou partida, com ou sem molho, desossada, esfolada, recheada, e sempre com igual sucesso” (Savarin, 2010: 75).

A quinta receita é Lombo de vaca com geleia: “Fui ver como estava a assar o meu lombo de vaca e regá-lo para que não ficasse seco”. (Loureiro, 2008: 73) Na cozinha, que mais parecia um campo de batalha, a receita é sinónimo de paciência e minúcia.

A sexta é Doce de figos com pétalas de rosa: “iria servir um doce de figos que tinha feito na véspera”. O jantar impressionou deveras o senhor embaixador que reconheceu sobranceiramente: ”na Corte portuguesa come-se quase tão bem como em França” (Loureiro, 2008: 79).

A sétima é Pudim de café (Loureiro, 2008: 130). “ De repente um aroma familiar mas mais forte do que estava habituado chamou-me a atenção.- Hum que cheiro bom a café! – disse voltando-me para Ricardina […] O cheiro a café fez-me lembrar um doce que gostava de cozinhar em Portugal. Um pudim feito com café bem forte. Havia de experimentar fazê-lo aqui no Novo Mundo”. (Loureiro, 2008: 129) O pudim faz ressaltar o aroma familiar e forte, imagem da sua relação com Ricardina e o Brasil. A nível emocional encontramo-nos num momento crucial, movido pelo desejo. É um momento em que o leitor pode imaginar quão feliz poderia ter sido a vida do cozinheiro se tivesse ficado ao lado de Ricardina, no Brasil.

A oitava é a de Papos-de-Anjo com Abacaxi: “Foi numa dessas conversas que lhe falei de duas sobremesas que andava a experimentar. Lembrei-me de juntar aos papos-de-anjo tradicionais o sabor tropical destas terras, o abacaxi…”. (Loureiro, 2008: 140). Numa terra onde há leite e mel com fartura, o cozinheiro realiza experiências, inventa. O Brasil é um paraíso de que se sente senhor. Estabelece-se um paralelismo entre o Cozinheiro e um homem de Ciência. É por ser obrigado a deixar o seu paraíso que António se vinga.

A nona é Língua de Vaca - Sabor de Molho Madeira. Tinha de me certificar de que a minha língua de vaca que o meu querido rei tanto apreciava ficava no ponto certo. Ia regá-la com um vinho especial acabado de chegar da Madeira e salpicá-la com cravinho”. (Loureiro, 2008: 147) A receita é confecionada no momento em que o cozinheiro conheceu o nome do seu verdadeiro pai. “És filho do teu padrinho” (Loureiro, 2008: 147), e o grotesco se junta naturalmente ao digerível.

A décima, Lampreia, é servida já em Lisboa: “estávamos a entrar no nosso Tejo” (Loureiro, 2008: 189). “As lampreias eram das coisas de que tinha mais saudades mas já não estavam nas melhores condições” (Loureiro, 2008: 192), tal como o estado de espírito do cozinheiro, entre as saudades que sentia do seu Minho e do tinha ficado do outro lado do Atlântico.

A décima primeira, Leite-creme queimado (Loureiro, 2008: 195), traduz o ânimo do cozinheiro que sentia “ queimados”, isto é, destruídos os seus sonhos. Um escudo amargo tapa a estrutura mole.

A décima segunda, volta à inocência do Caldo de galinha. Falsa inocência: “sabia que aquela melhoria era passageira, o arsénico que eu tinha colocado na geleia do meu amo era infalível e cedo os vómitos voltariam.” (Loureiro, 2008: 207) “ Eu, depois de me despedir do meu rei, saí do Palácio da Bemposta rumo ao Porto para […] refugiar-me no meu Minho, longe da corte”, perto da infância (Loureiro, 2008: 210).

A décima terceira, Sopa de castanhas e perdiz (Loureiro, 2008: 226), integra o jantar “digno de reis” oferecido aos médicos do falecido rei e ao seu amigo Domingos, aqueles que lhe tinham encomendado a morte do rei. A ironia está nessa “dignidade real” que não poupa classes e indivíduos.

A décima quarta, Pastéis de massa tenra de coelho e vitela (Loureiro, 2008: 233), é a da auto-punição, síntese de todas as lições. “Uma travessa de prata coberta com as armas dos donos da casa tinha guardadas as empadas de coelho com as manitas de César. Nunca uma travessa me pareceu tão pesada na minha vida”. (Loureiro, 2008: 232) Assim, está, também a consciência do Cozinheiro.

Também nós devemos saber que estas modas gourmets não são inocentes. “ao comermos, sentimos um certo bem-estar, indefinível e particular, que provém da consciência instintiva de que, com aquilo que comemos, recuperamos as nossas perdas e prolongamos a nossa existência“ (Savarin: 2010, 51). Artificialmente, de preferência com arte. Eunice Neves

Uma versão mais antiga deste artigo foi publicada no jornal As Artes Entre As Letras, Porto, n.º105, 2013, páginas 10 e 11.

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